terça-feira, 13 de novembro de 2012

Entrevista com arquiteto Lluis Millet, pai das Olimpíadas de Barcelona 92



Revista ÉPOCA Rio de Janeiro

“SÓ DE PENSAR NO QUE FALTA, ME DÁ UM NÓ NO ESTÔMAGO”
O ARQUITETO CATALÃO LLUIS MILLET, DIRETOR DE INFRAESTRUTURA DOS JOGOS OLÍM PICOS DE BARCELONA EM 1992, ACOMPANHA COM ANSIEDADE OS PREPARATIVOS DO RIO PARA 2016. PARA ELE,A CIDADE TEMA CHANCE DE SE TRANSFORMAR. “MAS PRECISA FAZER BEM FEITO”

Por PRISCILA GUILAYN de Madri

O pai dos Jogos de Barcelona em 1992 é tio da Rio 2016. Um tio orgulhoso, mas preocupado. O arqui teto e urbanista de 68 anos foi o principal artífice do projeto que soube, há 20 anos, reunir as virtudes olímpicas em prol da transformação de uma cidade. Ele também conhece bem o mapa dos Jogos cariocas. Foi jurado do concurso que selecionou o projeto do Parque Olímpico da Barra. Com a bagagem que acumula por ter trabalhado nas candidaturas de Sevilha 2008, Madri 2012 e na atual tentativa catalã de fazer de Barcelona sede dos Jogos de Inverno de 2022, Millet detalhou, em entrevista a Época RIO DE JANEIRO, suas expectativas para 2016. Segundo ele, o Rio tem força e talento para fazer “os Jogos mais humanos da história”. Mas possíveis falhas de planejamento e o excesso de ambição de alguns projetos podem atrapalhar o que, para ele, é a medida do sucesso de uma Olimpíada: o legado que ela deixa para a cidade e seus cidadãos.

ÉPOCA RJ - Qual será a importância, para o Rio, de sediar os jogos de 2016?

MilIet — Só se tem a dimensão da importância de ser cidade olímpica quando o evento termina: uma força impressionante e uma tremenda responsabilidade. A transformação é muito mais rápida do que seria normalmente. Mas, claro, isso pode ser bem ou malfeito. Em Atenas, por exemplo, algo falhou. Há instalações pouco utilizadas e degradadas. Montreal, por outro lado, gastou mais do que podia. O Rio não pode falhar. Ele é muito mais potente do que Barcelona e suas possibilidades de transformação são enormes.

ÉPOCA RJ - E qual será o maior desafio?

Millet - Quando o foco dos meios de comunicação sair de Londres, toda a atenção mundial se centralizará no Rio. Essa pressão é muito difícil de aguentar. A única forma de suportá-la é avançar: fazer as coisas muito bem feitas e rapidamente. Mas o tempo é um recurso escasso e o Rio tem projetos ambiciosos.

ÉPOCA RJ - Será uma corrida contra o relógio?

Millet - Só de pensar no que falta, me dá um nó no estômago. Em Barcelona, começamos os projetos, pensando em ser cidade olímpica, em 1981. Em 1984 tínhamos iniciado quase todas as obras. Só em 1986 nossa candidatura foi vitoriosa. E mesmo estando tudo, urbanisticamente, muito bem planificado, tivemos de correr.

ÉPOCA RJ - O ex-presidente Lula disse, em um discurso, que “O Rio está pronto”...

Millet — Em caso de emergência, o Rio tem capacidade para abrigar hoje mesmo a Olimpíada. O Rio é extremamente capaz. Dois pontos problemáticos seriam, no entanto, o aeroporto internacional e a capacidade hoteleira. Esses me preocupam.

ÉPOCA RJ - Barcelona também tinha problemas de falta de hotéis, não?

Millet - Tínhamos, sim, mas buscamos uma boa alternativa. Em vez de construir hotéis, alugamos seis grandes cruzeiros de luxo, que ficaram ancorados durante 15 dias no porto, servindo de hotel. Cada um tinha capacidade para 4 mil pessoas. Para isso, a transformação do porto foi obrigatória: era fundamental que ele estivesse equipado com todas as instalações necessárias para dar assistência e abastecimento aos navios. Graças a isso, Barcelona é, hoje, o primeiro porto de cruzeiro da Europa e o quarto do mundo.

ÉPOCA RJ - Fala-se muito que a autoestima dos cariocas aumentará...

Millet — A transformação do espírito das pessoas é algo importantíssimo. Até hoje, os barcelonenses ainda se sentem orgulhosos dos Jogos. Passaram a ser mais pontuais, a querer aprender idiomas, a conviver melhor, a sentir-se parte de um mundo mais globalizado. Ser parte de uma cidade que soube se transformar abre portas: é um cartão de visitas inigualável.

ÉPOCA RJ - Há risco de que uma oportunidade como essa se limite a um espetáculo de marketing?

Millet — Sim. Sem dúvida. Barcelona soube ser enorme- mente prudente. Construímos os menores estádios da história. Era o que nós necessitaríamos depois de acabado o evento e era o que podíamos pagar. Não se pode conceber elefantes brancos. É preciso fazer o que a cidade precisa que seja feito, e não o que alguns dirigentes, esportivos ou não, desejam. Saber encontrar a medida certa do esforço que deve ser feito é fundamental para que o legado olímpico seja absorvido pela cidade depois que o evento acabar.

ÉPOCA RJ - O Rio está tendo visão de futuro?

Millet — A operação mais atrevida é a de Jacarepaguá. Há uma concentração de instalações esportivas que provavelmente serão difíceis de digerir no futuro, pois na região da Barra da Tijuca residem, se não estou errado, 250 mil pessoas, e no restante do Rio, 6 milhões. Há um desequilíbrio. E, além disso, há também uma parte da cidade que é nova, ou seja, tem de urbanizar, levar água, esgoto eletricidade E um enorme desafio Em Barcelona nunca quisemos colonizar novos territórios. Queríamos reestruturar o que já estava feito Não tínhamos ambição expansiva. Queríamos requalificação urbana.

ÉPOCA RJ - Como Barcelona digeriu os Jogos?

Millet — As instalações olímpicas não demoraram nem 24 horas para ganhar novo uso. As sociedades público-privadas, criadas para o gerenciamento dessas instalações, já estavam trabalhando, desde antes dos Jogos, no futuro aproveitamento que dariam para elas. Esse foi o grande sucesso de Barcelona 92. A Vila Olímpica foi vendida muito antes dos Jogos e, no ano seguinte,já estava completamente habitada. O mesmo aconteceu com as vilas da imprensa e dos árbitros e juízes. As vagas molhadas do Porto Olímpico foram alugadas em menos de um mês. As piscinas olímpicas recebem até hoje 2 mil usuários por dia: são instalações municipais, administradas por entidades privadas, mas com taxas populares. O Palau Sant Jordi, em Montjuic, realiza entre 150 e 180 espetáculos, esportivos ou musicais, por ano. Tudo está sendo utilizado, embora algumas instalações tenham maior rendi mento do que outras.

ÉPOCA RJ - Que sugestões daria para que o Rio deixe um importante legado para os cariocas?

Millet — Pensar com muita clareza sobre a utilidade que cada uma das instalações terá a partir do dia seguinte do fim dos Jogos. Só assim se evita uma transição traumática. Do ponto de vista do esporte, o sucesso dos Jogos se traduzirá no fortalecimento dos clubes e das organizações esportivas cariocas. Urbanisticamente, as intervenções na Zona Portuária serão o ponto-chave.

ÉPOCA RJ - Existe algo de “milagroso” quando uma cidade se torna sede de Olimpíada?

Millet — Depende de que os dirigentes decidam aproveitar os Jogos em favor da cidade. O mérito de Barcelona foi re tomar o espírito mediterrâneo, o espírito grego, de realizar os jogos da cidadania. Misturar cidade e Olimpíada é um binômio fantástico. Mas é preciso fazer bem feito.
ÉPOCA RJ - Houve polêmica com desalojamentos, associados com a Copa 2014 e os Jogos de 2016, que, segundo a ONU, violavam os direitos humanos. Qual sua opinião?

Millet — O diálogo social é fundamental. Em Barcelona, jamais houve uma ação que pudesse parecer punitiva. A expropriação da Vila Olímpica, que significou a obtenção de mais de 40 hectares centrais da cidade, não foi feita por leis ou decretos e, sim, de acordos com cada um dos proprietários ou usuários do terreno. O projeto olímpico é um projeto de cidade e, portanto, é preciso desenhá-lo para as pessoas, e não de costas para elas. A queda de dois edifícios no Centro do Rio de Janeiro fez com que o Financial Times duvidasse da capacidade do Brasil para sediar eventos como a Copa e os Jogos Olímpicos. Dizia que o desenvolvimento econômico do país não foi suficiente para solucionar problemas básicos como o de infraestrutura. Isso não tem nada a ver. Poderia acontecer em qualquer parte do mundo. Barcelona tinha algo pior que era o terrorismo do ETA: no final da candidatura, sofremos atentados que nos custaram caro. Soubemos superar tudo. De qualquer forma, os cariocas já podem ir se preparando para aguentar a pressão da mídia internacional. Nós, em Barcelona, passamos por isso. É uma via-crucis tremenda.

ÉPOCA RJ - De que depende o sucesso do Rio?

Millet - Depende da vontade: cada cidade olímpica quer demonstrar algo. No final das contas, os atletas correm do mesmo jeito num lugar ou em outro; portanto, o que acaba marcando é o objetivo de cada cidade. Munique quis dar exemplo de altíssima tecnologia. Para Seul, a importância estava na abertura de Coreia do Sul ao mundo e na sua ambição de mostrar-se, por exemplo, como um grande fabricante de carros. Los Angeles foi o modelo de cidade rica: não precisava mudar,já tinha de tudo. Com muita austeridade, demonstraram ser excelentes administradoras. Cada cidade quer mostrar algo.

ÉPOCA RJ - E o que o Rio quer mostrar?

Millet — Isso é o próprio Rio que tem de responder. Na minha opinião, serão os Jogos mais humanos, mais calorosos da história. É o desafio de um país que emerge com uma força incrível. O Brasil tem uma sociedade potente, dinâmica, sem conflitos de raça, religião ou fronteiras. É um país feliz, rico, capaz e muito bem preparado profissionalmente. E o Rio merece aproveitar os Jogos para se transformar. E para que os cariocas deixem de ter medo de andar pelas ruas. A cidade deveria passar a ser tão aprazível quanto a sua maravilhosa paisagem.

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